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O Cosmopolita #5 - Lugares públicos e pessoas privadas
Uma viagem para Laguna e a dissolução da Iugoslávia
Era quatro horas da tarde. Domingo. Pouco dinheiro, pouco crédito no cartão e quase 30km de casa. O fim de semana tinha sido agitado e a última vez que eu tinha visto minha cama foi na sexta-feira de manhã, quando nos despedimos.
Depois de cansar de esperar no ponto de ônibus no centro da cidade, não sobrava outra alternativa a não ser chamar um carro.
É difícil encontrar um motorista que aceite uma viagem tão longa, os aplicativos comem 1/5 do valor da corrida e a volta é geralmente com o carro vazio.
Pra minha surpresa, não demorou até que um motorista aceitasse a minha corrida.
A rapidez com que o motorista aceitou não foi a única surpresa da viagem. No aplicativo, a placa do carro, o modelo, a foto do motorista e um nome que eu nunca havia visto. Miodrag.
Calvo, um rosto fino disfarçado pela barba que estava por fazer, olho azul e um sotaque que entregava que ele estava mais longe de casa que eu. Devia ter uns 60 anos. No braço, algumas tatuagens desbotadas.
Depois de uma conversa sobre Laguna e o evento que acontecia na cidade durante o final de semana, ele começou a falar sobre seu país natal e como tinha acabado no sul de Santa Catarina.
Miodrag havia vivido na antiga Iugoslávia Socialista. Descendente de sérvios. Seu avô foi assassinado por terroristas albaneses no Kosovo, pra fugir da violência, sua família fugiu para a região onde hoje é Montenegro.
Trabalhava embarcado, quando um acidente forçou com que tivesse que ficar três meses ancorado no Porto de Imbituba. O eslavo se apaixonou pela região e esses três meses viraram 30 anos.
Casou-se com uma lagunense e morou em várias cidades do litoral de SC. Durante vários anos administrou um bar em Navegantes.
Após a pandemia, com as restrições para embarcados - principais clientes do bar - voltou para Imbituba e vive hoje como motorista.
Miodrag lembra com carinho do seu país. A Iugoslávia viveu uma série de conflitos internos e crises econômicas, como a do Petróleo nos anos 70, que levaram para a implosão da república e a divisão em sete novos países. Segundo o motorista, os Estados Unidos eram os grandes culpados do conflito.
Se as memórias e a nostalgia não lhe traíram, até a morte do presidente Josef Tito, a Iugoslávia era um país excelente pra se morar, mesmo com suas dificuldades. Sobre o presidente falecido do seu falecido país, apenas elogios. Para ele, Tito era “o homem mais respeitado do mundo”, “reconheciam ele em qualquer lugar, na China, na Rússia, nos Estados Unidos… Todos gostavam dele”.
Quando lembrava do tempo de escola, elogiava a qualidade de ensino, onde aprendeu várias línguas e teve incentivo integral ao esporte. Antes da sua dissolução, o país foi capaz de empilhar algumas medalhas nos Jogos Olímpicos, incluindo um ouro no futebol.
O sérvio se orgulhava de ser da mesma região que os avôs do melhor tenista da história, Novak Djokovic, da última geração da seleção croata de futebol e ainda citou as estrelas da NBA, Luka Dokic e Nikola Jovic.
As memórias de infância se misturavam com comentários da política mundial.
Milei? Um louco, mas pior que estava, é difícil ficar.
Zelensky? Um traidor dos ucranianos, boneco dos Estados Unidos.
Sobre Putin, pouco falou, mas tinha algumas ressalvas.
Joe Biden e a máquina de guerra americana foram os grande alvos das críticas do sérvio. Criticou o apoio do político norte-americano tanto na Guerra do Afeganistão quanto na invasão no Iraque quando ainda era Senador, e, agora como Presidente, o apoio à Ucrânia e a Israel.
Quanto aos conflitos que acontecem hoje no mundo, se limitou a focar nos civis que sofrem os efeitos colaterais da guerra. Acusava os interesses financeiros e políticos dos países que eram postos acima das vítimas.
Discursava como um pacifista, a violência parecia estar presente de tal modo na sua história que não haveria outra posição à ser defendida por ele.
Chegando em Laguna, Miodrag quase emocionado, disse que ir ao centro da cidade era como voltar pra casa. Apesar do oceano que separa os países e das culturas diferentes, para ele, estar no centro histórico da Cidade Juliana era como voltar pra Montenegro.
Notas do escritor:
Saudações! Depois de seis dias sem internet, pude escrever a antepenúltima newsletter deste ano e também do semestre. Quase uma semana atrasados, vou conseguir estar com vocês até esta quarta-feira (As próximas newsletters já estão escritas e serão lançadas conforme programadas)
Felizmente, meu roteador queimou na última terça-feira e eu fiquei fora de casa alguns dias para ter o que fazer, se não, talvez nunca teria conhecido Miodrag. As coisas acontecem como tem que acontecer.
A arte escolhida para a capa deste texto no site é do xará do meu amigo Miodrag, o pintor Miodrag “Mica” Popóvic.